Saibamos descalçar-nos de preconceitos quando batermos à porta de alguém e quando atravessarmos essa porta que o nosso ego não se apodere da nossa voz, muito menos da casa que é (d)o outro e somente (d)ele.
2020 tem sido um ano daqueles que se a memória não me falhar e a vida for longa hei-de dar como exemplo a quem um dia me questionar sobre a minha história.
Vivi no ano em que o mundo parou, reajustei a velocidade e recomecei com pés de lã, adaptando-me o melhor que sabia às limitações impostas pela pandemia invisível que só ataca os humanos dos quais também faço parte. Esta humanidade tão cheia de coisas e de si mesma…
Pergunto-me porque será… numa fase inicial pensei que era uma lição e que os sobreviventes, iriamos ficar tão agradecidos que seriamos uma versão atualizada e muito melhor do que eramos, mas atualmente e com tudo o que tem vindo a acontecer, comprovo que somos só seres humanos e que há milagres difíceis de acontecer, por muito crentes que sejamos no lado melhor de cada um.
Há reprogramações que não se fazem assim, infelizmente!
E, não estou a queixar-me. Este ano, vi o projeto que aqui defendo entrar na escola dos grandes, com a segunda candidatura aprovada e conseguimos os Estatutos de IPSS. Tenho na Associação pessoas em quem acredito e acreditaram em mim quando foi preciso e um conjunto de pessoas maravilhosas que tem vindo a aumentar do meu lado.
Finalmente tenho aquela equipa multidisciplinar e de excelência com que sonhei, desejosa de arregaçar as mangas para combater o número assustador que nos destaca a nível nacional.
Sim temos quase 4200 idosos em situação de vulnerabilidade no distrito. Este número que parece surreal tem um rosto associado. Um rosto cansado e com rugas, que carrega uma história e que sobreviveu a guerras e outras pandemias, numa altura em que não havia redes sociais, mas que agora se sentem mortos, mesmo com o coração a bater, desligando-se de tudo antes da tal hora chegar.
Não há nada pior do que isso seguramente.
Vejo as pessoas idosas perderem a validade aos nossos olhos e isso demonstra a pouca validade que temos uns para os outros
E é por isso que insisto na necessidade de combater a solidão e o isolamento daqueles que contribuíram com tanto de si para a nossa história e de muitos como nós…
Hoje coloco aqui uma foto do Sr. Zé… outra das muitas que tenho.
Não me canso de olhar para esta imagem recente que me faz pensar num percurso de quase três anos e meio em que pouca gente acreditava.
Desde então e no meio de muita aprendizagem e crescimento, vamos somando conquistas em que pessoalmente me parece que fico a ganhar bem mais do que ele.
O Senhor Zé, que a única coisa que me pede é que passe mais tempo, que não ande a correr e não vá com pressa.
Nem sempre acontece ir com tempo é verdade. Muitas vezes chego deixo o que faz falta, vejo se está bem e venho embora, mas quando vou e me sento é vê-lo desdobrar-se em tentativas para eu estar confortável.
“Põe isto (uma toalha) na cadeira para estares melhor…”
Olho para este homem, que já me vai dizendo que lhe custa a vestir-se, mas que mal vê um raio de sol vai cavar para a horta, porque o ajuda a passar o tempo enquanto espera por mim.
Este Sr. Zé vai cedendo e tenta aceitar o apoio que lhe vou oferecendo e que muitos vezes são pequenos nadas compostos de tudo…
Há meses que lhe nego a saudação habitual de dois beijos à chegada, à partida e um abraço… há meses que raramente vê o meu rosto sem máscara!
Há dias que desespera e outros que sorri, como eu e todos os que vivemos com o Covid-19 e tudo o que nos leva.
A semana passada deixou-me trazer a roupa! E andei durante dois dias a assimilar essa pequena vitória. Sim chorei…! Sou uma chorona confesso e quando estou feliz ainda choro mais facilmente. Ainda hoje me sinto festejar este voto de confiança. Fiquei tão feliz por ele me confiar a roupa que até há bem pouco tempo não queria a cheirar como a minha, que a tratei como se fosse de um rei.
E é… o rei da sua história, do seu tempo, das suas coisas…
Não destila ódio, não dá opinião se não lha pedirem, não fala de ninguém e vai-se adaptando com algum custo às mudanças que a idade lhe provoca. Também chora e ri com facilidade, faz birra e às vezes amua, mas logo passa.
Para o Sr. Zé o mais importante não é a barba feita, o banho e a roupa lavada.
É a presença, o sorriso e o afeto.
Faz-me ter mais fé nas pessoas e na importância de senhores Zés… que dizem não, muitas vezes querendo dizer sim.
“A satisfação de te ver chegar, é a tristeza de te ver ir embora…” e é com esta frase que se despede muitas vezes olhando para o chão de olhar perdido. Às vezes depois de salientar que não faço nada de jeito, acrescenta que o que me vale é o coração e recentemente até disse que tenho dois! O que nos fez rir bastante.
Talvez tenha razão e não faça nada de jeito, mas ele sim e isso é-me suficiente. A voz que recuperou, o olhar, o sorriso e a fé, acrescenta-me o tal coração que já vê a dobrar e o valor em tudo o que me ensina e me permite fazer.
Pequenos nadas para muitos, compostos de tudo o que nos permite evoluir verdadeiramente, para mim.
Tempo, afeto, partilha, que nos acrescenta a todos aquele brilho de fé e esperança que se permitirmos e não estivermos atentos a vida vai apagando.
Estejamos atentos para não perdermos o brilho, nem sentirmos a necessidade de apagar o brilho de ninguém.
Sejamos mais Senhores Zés… exemplo de liberdade, autenticidade, amor e respeito.
Sejamos mais ouvidos, olhos e coração, porque a nossa liberdade termina onde começa a do outro. Saibamos descalçar-nos de preconceitos quando batermos à porta de alguém e quando atravessarmos essa porta que o nosso ego não se apodere da nossa voz, muito menos da casa que é (d)o outro e somente (d)ele.
Muitas Rugas de Sorrisos e mais momentos leves e felizes!
Helena Saraiva
Associação de Apoio Social
Tlm: 926 625 915 (Chamada para a rede móvel nacional)
Email: info@rugasdesorrisos.pt
NIF: 514558172